Cidade: Uma história de 107 anos contada com beleza e poesia
Em 107 anos, a história de Marabá tem sido contada e recontada em prosa. Livros, revistas, jornais e relatos orais testemunham uma cidade que nasceu sob o signo do extrativismo e que agora vive a diversificação entre o agronegócio, a indústria e o comércio. Mas em todas as décadas encontramos a história narrada também em poesia.
Por vezes, os versos de diferentes poetas destilam uma cidade metafórica, esbanjando seu charme por intermédio de ciclos econômicos; em outros momentos, as poesias denunciam, alertam, testificam, enaltecem, aplaudem ou contextualizam o momento que vivem, como fez há poucos dias o Rimador de Marabá, clamando, com versos e rimas, para que o marabaense fique em casa durante a pandemia do novo coronavírus.
Como não amar Marabá e querer vê-la na cor da paz, combatendo os males, as doenças e os pecados praticados?! Pensando em rever os mais lindos cenários das recordações e criar, também, aquela cena do encantamento, podemos mergulhar na poesia de dezenas de marabaenses – nascidos aqui ou não – que vivem na cidade, e contam a história de seu povo, seus costumes e, também, da sua beleza natural.
São poemas cantantes nascidos entre o ontem e o hoje. São com eles que Ademir Braz, Airton Souza (entre tantos outros que peco aqui por não citar), acariciam esta cidade para desnudá-la, exibindo suas curvas mais belas, de quem desposada do sol, merece ter o brilho do progresso harmonioso.
Só a poesia para nos acalentar nestes tempos de medo, de ficar em casa, de isolamento. No poema que colei abaixo, de meu poeta-escritor favorito Ademir Braz, destaco um trecho de “Minha Cidade Minha Vida”, extraído do livro “Rebanho de Pedras”, que parece representar este momento de incerteza em que vivemos:
“Sim, são ácidos esses dias,
quando até o amor se exila.
Então a poesia sai de mim aos gritos…”
Toda vez na história, quando a humanidade sofreu com uma doença contagiosa, a poesia estava ali para representar aquele momento. Foi assim com Manuel Bandeira, no Romantismo, que teceu sua poesia sob a cicatriz da morte.
Por isso, digo de Ademir, o Pagão, que a poesia entrou em sua alma como missão, dilacerando-a. Seu verso, com certeza, tem sido a própria vida.
Texto de Ulisses Pompeu
Foto destacada: Jordão Nunes
MINHA CIDADE, MINHA VIDA
Ademir Braz
Assim como o pedreiro orienta
do ferro e da pedra o verbo exato;
como a lavadeira que os panos leva
aos girassóis da fonte matinal
e nos álveos de luz dispersa em cora
a seda orvalhada dos lençóis;
assim minh’alma disporei em pranto
até que tu, só tu, aurora minha,
raies sobre as velas do meu canto.
Entre as sombras que a luz semeia
de brilhantes, enredado em fluídos
ouço tua voz, cidade, acalentando
em pranto insones e perdidos.
Sobre o sono lânguido das rochas
ardem lírios brônzeos. Secretos
címbalos cintilam em vertigem:
é todo estilhaço pelos tetos
o mar luar silenciosamente.
Puro ouro em pó sobre a calçada
é teu soluço, córrego sem leito,
e que sentido tem a luz assim
esparsa e rara a transmudar-me o peito?
Eu vivo imerso para sempre neste
e nas coisas deste e dos outros mundos.
Há dias, porém, que me aborreço
até com que me aborreço. São
dias inóspitos, de fardos e farpas,
agravos e adagas; são águas terçãs
de agosto aquilo com que me aborreço.
São ácidos dias, cidade, quando
a vida, aos trancos, derrapa, trepida,
e a mão em chaga viva tece de urtigas
um manto sob o céu de pássaros e bruxas.
E troto então em tuas ruas várias
entre meninos sombrios e cães sem dono
e lembro, dos teus cantores, aquele
que chorou por ti no plenilúnio:
“Sofres: teu mal devora-te as entranhas;
há podruras que a seiva te empeçonham…”
A voz tonitroante – e inútil, cidade –
do poeta ressoa nos casebres
e na praça mouca dos poderes
(mas nem por isso cessarei o alarde).
Queria então falar de amores, cidade,
mas o amor não é tudo: não é paz,
nem crença, nem destino. Não é pão,
justiça, crime ou câncer. Nem terra
ou fome; cataplasma, água, ar, insônia,
nem bebida forte que os olhos doura.
Que fim levou a amada, cidade,
a dos olhos dourados e mãos camponesas
que um dia, ao fim do dia,
levou-me uma rosa entre os seios
e a promessa – já realizada –
de uma dor tão grande como nunca vista
em nenhuma teogonia? A amada
e a rosa eternizaram-se no espelho.
Vês? Tu e eu morremos um para o outro
diariamente. (Somos o que somos. E somos
apenas memória do que fomos). Tudo que sei
disperso neste coração legado às ventanias:
só trago no céu da boca, indissoluta,
a tatuagem invisível de tuas estrelas.
Sim, são ácidos esses dias,
quando até o amor se exila.
Então a poesia sai de mim aos gritos
e não sei senão das coisas que os pássaros
perdem, o mar deixado atrás, a negra noite
que se acumula na boca
entre versos de Neruda.